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NERI PEREIRA DA SILVA

Hora do almoço, terceiro ou quarto dia me adaptando à vida no Seminário Santo Afonso. Refeitório lotado de seminaristas novos misturados com os mais velhos até para facilitar o entrosamento de todos. Na nossa mesa haviam tres mais velhos: um era o José Leonélio , Manoel Hildegardo de Almeida e outro não me lembro o nome, parece-me que era de Formiga e era muito colérico e vermelho...Todos se serviram e esse último, o nervoso , pediu licença e levantou-se para buscar algum talher na copa...foi a deixa: um dos mais velhos me desafiou " Duvido você colocar pimenta na comida dele, aproveita que ele está de costas!". Cedendo facilmente à tentação não pensei duas vezes e peguei o frasco de pimenta e apertei sobre a comida do ausente, mas acho que alguém já havia desentarraxado a tampa o suficiente para ela se soltar de vez. Ela caiu junto com uma meleca de pimenta .Tive que revolver o arroz e feijão para deixar tudo escondido dos olhos do sujeito...Quando ele regressou todos nós continuamos como se nada tivesse acontecido...mas ao colocar o primeiro bocado na boca cuspiu tudo de volta no prato e me encarou. Por que olhou direto prá mim? Não poderia ter sido o Mané ou o Leonélio? Essa era a pergunta de um ingênuo e de um novato...jamais dois mais velhos fariam uma coisa dessas...e fiquei mais vermelho que ele, azul, roxo, não sabia se entrava debaixo da mesa ou saía correndo...o fato é que o rapaz livrou-se do prato na copa e se serviu novamente sem falar nada.
O tempo passou e, por incrível que possa parecer não houve nenhuma atitude de vingança ou coisa do tipo depois disso...acabei me entrosando com alguns dos mais velhos, dentre eles o José Leonélio.
Certa noite, após o jantar, não se sei se por revanche ou não, convidei um amigo para planejarmos aprontar com o Leonélio. O que fazer ? Como fazer?. Esse outro então teve uma idéia que me pareceu simples mas que o deixaria muito furioso: O Leonelio, quase sempre ia dormir bem tarde pois ficava estudando na classe até o último horário. Entrava no quarto e desmaiava na cama. Teríamos então que subir até seu quarto, pegar seu pijama , levar até o lavatório e encharcar totalmente com água, a seguir sem torcer o pijama, fazer nós nas pernas da calça e nos braços da camisa...dezenas de nós bem apertados o suficiente pra deixá-lo soltando-os por pelo menos duas horas. E foi o que fizemos enquanto o Leonélio ficava jogando no Salão de Recreio.
Não sabemos qual foi a sua reação já que nós os novatos dormíamos em outro quarto...mas pudemos notar que no outro dia ele ficava falando baixinho com os amigos de quarto: " quem foi?" " Isso não ficará assim!".
Os dias foram passando e vez ou outra o Leonélio comentava na roda de amigos que haveria revanche , só estava aguardando uma oportunidade de descobrir quem aprontou com ele. Eu, fiquei na minha, haviam aprontado comigo no refeitório, agora sentia que já havia me vingado da situação...Mas, fui notando que o Leonélio parecia ter-se acalmado e esquecido de tudo. Jogávamos bilhar, ping pong, dama ou xadrez e ele não demonstrava nada que despertasse sinais de afronta. No entanto, havia nele aquele famoso sorriso maléfico de quem já se vingara e estava apenas aguardando o desenlace dos acontecimentos...era aquele riso disfarçado que apenas bom observador conseguia notar e eu sempre aprendi observando..."alguma coisa ele fez e já se vingou. Quem foi que lhe disse ser eu quem aprontou com seu pijama? " A partir daí, minha consciência me deixava sempre alerta e desconfiado de todos os amigos mais próximos.
Quando fui me deitar senti um estranho fedor, parecia ser de rato morto...os amigos vizinhos de cama também sentiam aquele cheiro esquisito. Cada um procurava saber de onde provinha aquele cheiro que dia após dia só foi aumentando cada vez mais. Abríamos nossos armários e olhávamos sob as camas. O cheiro de tão forte chegou ao ponto de percebermos que se restringia naquele espaço entre duas ou três camas....e os dias passaram e lentamente aquele cheiro ruim foi se dissipando mas não de tudo , pois ainda ficou no ar um gosto de azedo e coisa podre .
Eu, sabia no entanto , observando o comportamento do Leonélio, que fora ele quem aprontara..mas eu iria descobrir o que ele havia feito.
Certa tarde, na hora de trocar os lençóis da cama, notei que havia um pequeno furo na lateral do colchão, tão pequeno e escondido que facilmente passaria despercebido...abri um pouco mais com os dedos e senti que saía um fedor dali. Abri mais e enfiei a mão dentro do colchão. Haviam os restos mortais de um passarinho já seco . Ele apodrecera ali debaixo de meu corpo. Não acusei o Leonélio, pois não tinha a certeza de ser ele o culpado. Poderia ter sido o próprio " nervoso " se vingando por causa das pimentas em seu prato...Seja lá quem fosse, quem o fez, fez muito bem...E nós, os mais novos aprendíamos uma lição : " Não mexa com quem está quieto, principalmente se for da turma dos mais velhos"!.

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Após o almoço todos tínhamos o dever de estar no barracão de recreio, ali haviam quase todos os tipos de divertimentos: dominós, baralhos, ping pong, bilhar, sinuca, xadrez, dama , trilha , gamão ; todos distribuídos pelas várias mesas. .. Logo na minha primeira semana de Seminário de Santo Afonso em fevereiro de 1973 procurei me adaptar às regras da nova casa: agora em seminário dos maiores. Sentiria talvez saudades dos anos na cidade de Tietê, lá do seminário dos menores... ali em Aparecida parece que a responsabilidade era mais exigida, afinal estávamos cursando os três últimos anos antes de ingressar na faculdade. Parecia-me no entanto que ali também valiam algumas regras comuns que seguíamos no Seminário de Santa Terezinha: haviam os novatos e os mais velhos. Bem diferente do que acontecera nos primeiros dias de quando entrei para o Seminário, ali no Santo Afonso já estava mais adaptado á vida comunitária, fundamental para todos os missionários redentoristas. Nos primeiros dias já conhecia todos os padres e os novos amigos. No barracão de jogos, circulava entre as mesas e percebi que ao redor de uma delas formara -se um pequeno grupo compacto de torcedores . Aproximei-me. Havia um padre jogando dama com um seminarista. Quando esse perdia dava seu lugar para outro sob as ovações de apoio e críticas dos companheiros. Ninguém conseguia vencer aquele padre. Eu, raramente perdia uma partida de dama. Poderia tentar, afinal não tinha nada a perder. Entrei na fila. Alguns amigos se aproximaram para assistir ao combate ou a derrota. Parecia que esse tal padre era dos bons e impunha respeito. Chegou a minha vez. Sentei-me diante dele. Ele me olhou por cima dos óculos, franziu a testa e pediu prá que eu começasse. Pensei com meus botões: " Esse padre deve ter um cargo importante pois todos se portam diferente diante dele e mantém certa distancia respeitosa "...mas todos estão perdendo pois usam de jogadas clássicas no início dos jogos de dama e o padre só faz também armar armadilhas clássicas. Farei diferente, fugirei da mesmice e partirei para toques sem nenhuma conexão obrigando o padre a sair de seu "status quo "" e não lhe darei tempo de pensar em fazer nenhuma jogada de ataque...iniciei a partida e, aos poucos vi o padre franzir os olhos e me olhar por sobre os óculos e coçar o queixo. " Bom sinal," pensei, "ele sabe que diante de si tem um jogador mais esperto". ..Continuamos o jogo e aumentou o grupo da torcida ao redor da mesa. Olhei nos olhos do padre e não gostei do vi: estava sério demais e havia a ameaça de um sorriso bem na linha em um lado da sua boca. Isso era sinal de que ele estava muito confiante e só aguardando a chance de dar o golpe fatal...afastei o corpo da mesa e, tentei imitar o padre: coloquei também a ameaça de um sorriso no canto da boca e o encarei e disse: " Não sei quem é o senhor, padre, mas comigo será diferente...fique na sua porque não jogo prá perder!". A torcida caiu na gargalhada e alguns se ajuntaram atrás de mim, outros vendo que eu me colocava a altura do padre também se juntaram aumentando o bloco de torcedores. Conduzi as jogadas com mais lentidão sempre fugindo daquilo que o padre estava acostumado a jogar...mas aquele " bendito" sorriso que não saía do canto de sua boca começou a me perturbar...e tentei perceber quais eram as suas intenções mas não conseguia pois ele ia respondendo às minhas jogadas como se tivesse certeza da vitória. Nas últimas jogadas eu já sabia que venceria mas, o padre parou, coçou o queixo, franziu os olhos e demorou mais do que o normal para responder a minha jogada e então fez a sua jogada fatal...a torcida aplaudiu e novamente caiu na gargalhada: " Aí, Neri , encontrou um parceiro à sua altura!". Cumprimentei o padre: " Parabéns, gostei de jogar com você, vamos jogar mais vezes e te pego, muito prazer, eu me chamo Neri! ". E então, se levantou e estendeu-me mão: " O prazer foi meu, mas você tem que treinar mais, é muito esperto, eu me chamo Pe. Carlos Silva ! - " nos cumprimentamos e ele se retirou. Os amigos se aproximaram: " Não conhecia o Padre Silva?" - me perguntaram. " Não!", ele joga muito bem !" - respondi. " Ele é o diretor do Seminário!" - respondeu um amigo - " é muito inteligente, entrou no seminário com apenas nove anos de idade!".A partir daquele dia fui percebendo como eram os padres do Seminário. Cada um trazia uma personalidade marcante...e no Salão de Jogos, entre jogos e bate papo a gente se entrosava mais e adquiria confiança...O Pe. Pelaquim, jogava bem ping pong com suas pernas de Mané Garrincha e era um grande músico e teatrólogo...aprendi música e atuei em algumas peças teatrais sob a sua direção . O Pe. Carlos Felício mantinha-se mais nos bate papos e com ele aprendi a gostar de literatura e me indicou prá ser o cronista mor do seminário. O Pe. Rodolfo me ajudou a gostar de geografia e a gostar de desenhar. Colocou-me como coordenador do Jornal " A Cartinha " mas eu ainda não estava preparado prá isso...naquele tempo era impressa em tipografia. O Pe. Rodolfo desenhava os personagens e a partir daí era feito um clichê de cada desenho...um trabalhão. Cada padre dava o máximo de si mesmo para que tivéssemos aprendizagem: ' Quem não se lembra do Padre Pacheco? Do Padre Peixoto? Do Pe. Morelli? Do Padre Moacir?....cada um na sua, desde as fabulosas aulas de física no laboratório, as aulas de inglês e francês pelo método Yasigi, as aulas de História Geral onde o Pe. Silva nos conduzia até o tempo dos Césares em Roma...Eram aulas com vida e paixão para ensinar...Só quem viveu esse tempo sabe o quanto ele significou..,O Pe. Libardi e sua preocupação com a ditadura que naquele tempo fazia pressão sobre os seminários...( depois que saí, em 1975 ,tive dificuldade em adquirir meus documentos de reservista principalmente porque era ex seminarista ) Percorri os quartéis de Bragança Paulista até Jundiaí no Gac e os comandantes sempre argumentavam: "Voces todos são comunistas, mas aqui vocês não mandam não , vamos te dar um chá de cadeira!". Fiquei nesse empurra empurra de um quartel para outro durante três anos. Os amigos também eram um caso a parte...as afinidades aproximavam-nos e dentre eles tive alguns novos em Aparecida... e com eles aprontávamos muito. Na próxima, tenho que narrar o que aprontei com o José Leonélio de Souza e de como ele se vingou com uma tacada de mestre, ou seja, de seminarista mais velho.

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Sozinho em casa, meus filhos com suas irmãs em Mairiporã, aproveitei minha noite para visitar a Uneser e cumprimentar alguns amigos . Joguei uma canção no fone de ouvido e parti pro passeio internético.
Vi o jeitão, muito parecido com o meu , do Vicente de Paulo Zica, e ali ancorei minha nave...e como foi bom estar ali com meu amigo ouvindo-o falar do perdão de forma tão profunda abarcand...o todos os jogos mentais possíveis até o modo científico de ver a coisa...Ele me levou a rever os ensinamentos de nosso Mestre Jesus Cristo sobre a importância do perdão...é o tipo de visita em que você chega com um jeito meio sem saber no vai dar e sai dali todo cheio de esperanças e mais feliz e livre... tive vontade de abraçá-lo e agradecer pelas palavras tão cheias de Deus. Antes de partir eu me comprometi em voltar a visitá-lo mais vezes. Precisava continuar a viagem.
A próxima parada foi no recanto dos poetas, ali estava o Afonso de Souza Cavalcanti...ler Cavalcanti não é para qualquer um...é um ritual litúrgico que acontece dentro da gente tamanha a sensibilidade que brota do coração dele. A gente tem que se preparar, limpar a alma das grosserias do dia, inspirar ar saudável pois o que vamos ingerir é néctar dos deuses...Como pode alguém pintar tão bem o encontro de Jesus com a samaritana no poço de Jacó usando a maestria da rima? Aí é demais da conta. E quando ele enaltece sua mãe e nela todas as mulheres apenas pincelando livre e solto abusando outra vez das rimas e dos volteios sonoros em cada frase? Só podia ser um Cavalcanti, um Cavalcanti dos versos a altura do outro dos pincéis. Fiquei ali hipnotizado pela beleza poética em tudo o que escreve mas eu tinha que partir...infelizmente pude saborear no máximo cinco obras espetaculares desse poeta pois o tempo me pedia prá continuar a viagem...mas prometi regressar e continuar essa refeição ao seu lado. Agora que o vejo sem os véus do desconhecimento, regressarei mais preparado para poder ser merecedor de tanta sensibilidade.
O Benedito Franco já é meu conhecido há muito tempo..ele sempre me visitava via email mas sumiu..deixou porém um par de dezenas de causos salvos em meu arquivo de email. Ele nem sabe disso mas, quando eu não tinha tempo de recebe-lo de imediato eu o conduzia para um departamento que reservei única e exclusivamente prá ele...as vezes vou até lá e me deleito com os seus causos....visitando-o hoje na uneser, já adentrei como se fosse de casa...procurando o pé de gabiroba...mas acabei me deparando com outras pessoas tais como o fiscal , o Sô Bernardo e outros mais...e queria perguntar ao Benê se afinal já havia lançado seu livro...no entanto, meu coração que ainda é humano quis falar mais alto e apreciar a alma deste escritor....O Benê, caso raro hoje em dia, fala sobre as pessoas, seus sonhos, suas esperanças, seus causos do dia a dia, bem parecido com aquele mineiro que adora um dedinho de prosa. Se você gosta de conhecer gente, homens, mulheres e crianças de verdade, não se acanhe: Entre que a casa é sua, ali se desfilam os mais variados personagens do dia a dia do brasileiro.
Havia ainda que visitar mais um, sem pedir licença ao Benê, roubei uns causos dele e levei comigo prá guardar num seu departamento próprio que reservo em minha caixa de e-mails.
Próxima parada: Adilson José Cunha...tive que esquecer um pouco toda a parafernália da nave internética para pousar mais tranquilo nesse pedaço de chão brasileiro. Quando a gente lê Adilson Cunha a gente sente o cheiro da terra, e se chove sente o cheiro de terra molhada..acho que em suas veias corre o Seu Francisco e sob a sua pele se escondem serras, rios, alamedas e avenidas ...é o tipo de escritor que me coloca em meu lugar: moro no mato, mexo com terra, esterco, e me enfio pelos matos e rochas que enfeitam meu espaço. Quando ele nos fala da história parece que as ruas viram gente até com registro de nascimento e aposentadoria...mas o que me deixou pasmo foi encontrar o " Seu Francisco feito gente aqui na tela de meu pc. O Adilson insuflou alma no Rio São Francisco, só faltou revesti-lo com calça e camisa e bota. É o tipo de escritor que nos faz reviver a vida de forma mais ampliada: Olha existe outro mundo fora do seu pequeno circulo vital!
Enfim, o tempo passou e fiquei de visitar outros que estão na UNESER, mas fica aqui um convite aos "UNESARIANOS ", não deixem de falar com esses escritores, eles são fantásticos e certamente farão história dentro e fora da congregação redentorista..está ouvindo Carlos Felício?, meu incentivador no tempo de Santo Afonso?

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OS MISTÉRIOS RONDAVAM O SEMINÁRIO SANTA TEREZINHA
Dentro do seminário havia uma hierarquia natural que respeitávamos..os mais antigos, os grandes sabiam impor mais respeito...acima de nossa classe havia o segundo ginasial, acima do segundo o terceiro e assim até o quarto ano onde circulavam os donos do pedaço...dali saíam os monitores, os melhores atores e sabiam se impor nas horas de serviço, eram os nossos irmãos mais velhos. Nós, o menores admirávamos os talentos que brotavam lá em cima no quarto ano ginasial...havia o Marangoni que cantava muito bem e era o puxador dos cânticos na missa, mais tarde passou o cargo pro José Inácio Medeiros e prá mim...éramos os mais afinados da turma e os incumbidos de escolher as músicas na missa...mas noutro dia falaremos sobre os talentos deles todos hoje podemos falar dos mistérios que rondavam os corredores...
Em todas as sexta-feiras a noite, podíamos assistir o Cine Mistério na Rede Bandeirantes, quando apresentava a série Frankenstein com Boris Karlof...ou O Conde Drácula e outras séries de terror....tv preto e branco em 1969, findando o filme as 23:00 hs, os poucos que tiveram coragem de ficar até o fim tinham que subir até o terceiro andar onde ficavam os dormitórios....Recordo-me, que nós os pequenos, Inácio Medeiros, José Silvio Sartori, Ubaldo, Gasparoto, saíamos juntos e no corredor escuro e frio íamos subindo degrau por degrau apoiando no corrimão e perscrutando os cantos mais escuros do prédio...passávamos pelo segundo onde ficavam as classes de aulas e estava tudo no breu, as vezes um miado de gato lá prá baixo no jardim interno mas estávamos juntos...todos já dormiam no quartão onde haviam trinta e oito camas sem contar as camas da " marinha"...não podíamos acender as luzes, e cada um ia se aproximando da cama apalpando os pés daqueles que já estavam no segundo sono...
Antes de dormir, o vizinho perguntava baixinho" E aí? Como foi o final do filme? Mataram o Frankenstein? " - Que nada, vai ter a continuação na outra sexta!"...O outro segredou ainda mais baixo:" Cara, sabe o que aconteceu comigo agora a noite logo que levantei o travesseiro? " - " Não, que foi? Aprontaram com você? " - o outro então confessou: " Recebi um bilhete do "Céu " ! - " Meu Deus, deixa eu ver! O que ele diz aí? " - " Veja você mesmo!"- Peguei o bilhete( um pequeno pedaço de papel medindo uns 10 cm por 5 cm, branco e dobrado ao meio ) em que se lia:" Sei que você esteve roubando frutas na geladeira ontem a noite, cuidado!" assinado " Céu "...'Ainda não descobriram quem é o "céu"? - " Não, dizem que pode ser alguém do quarto ano, turma do Mané, Mantuaneli, alguém lá de cima ".
Esse " Céu " ficou um mistério... era um inquisidor secreto que sabia de tudo e postava bilhetes nos lugares mais imprevisíveis...o aluno ao abrir um livro dava de cara com o bilhete misterioso " você fez isso ou aquilo etc e tal" , sempre uma verdade que ninguém mais sabia...receber um" céu " significava que estávamos sendo vigiados..e vinha o medo e a curiosidade de quem sabe algum dia descobrir quem era esse que tudo via e sabia...só podia ser gente do quarto ano...mas no outro dia na aula de canto com o Padre Libardi era o momento de lavar roupas sujas...e o Padre Libardi tinha uma paciência mas as vezes caía na gargalhada percebendo nossa ingenuidade ou falta de esperteza...e foi num desses momentos que alguém reclamou que haviam lhe roubado todas as suas pastas de dente, mas não ficou por aí, outros também reclamavam haver sumido a toalha de rosto, o pente, os óculos...com certeza havia um cleptomaníaco entre nós...e agora, quem poderá nos socorrer?
Estava ajeitando a cama prá dormir, as luzes ainda estavam acesas e três dos grandes entraram pela porta do quarto e vieram caminhando silenciosos e observando cada cama.., O Coutinho era o líder, outros dois não me recordo, podia ser o Savassa e o Fuinha...não me lembro , mas logo que passaram meu amigo me segredou baixinho: " O Coutinho é investigador , sabe dessas coisas, detetive particular, filho de delegado, o Padre Libardi pediu prá ele investigar o caso do sumiço das coisas aqui no quartão!"" Dizem que ele está fazendo uma armadilha prá pegar o seminarista que anda roubando!' - " Por que não pedem prá ele descobrir quem é o " céu"?
Nós, os novatos . como nos chamavam no primeiro ano, ao encontrar com o Coutinho e seus auxiliares, passávamos pro outro lado do corredor, havia um ar de suspense sobre suas cabeças...
Hoje, recordando eu me questiono se o Coutinho tinha consciência que nós o respeitávamos como alguém de autoridade e de muito respeito...e se ele tinha realmente duas pessoas que o ajudavam ou se tudo era resultado de nosso medo, de meu medo principalmente...mas fica aqui a pergunta: O Padre Coutinho, afinal, fez curso de detetive ou era tudo embromação?

APRENDENDO A SER MISERICORDIOSO


Antes de escrever sobre o terceiro QUEBRAR A CARA e por aqui compartilhar vivências que edificam nossas vidas, acho conveniente reviver com vocês duas experiências que me foram muito marcantes .
A primeira ocorreu entre os anos 1969 e 1971, quando era seminarista no Seminário Santa Terezinha na cidade de Tietê...alguns amigos que talvez se recordem do fato poderão ajudar relembrando esse tempo...Éramos em alguns que vivíamos sempre brincando, estudando e também aprontando juntos...José Silvio Sartori, Ubaldo Bergamim, Edson Gasparoto, José Inácio Medeiros e outros...havia no terreno abaixo do seminário um grande bambuzal e no meio deste muitas trilhas muito bem cuidadas que sempre estávamos varrendo ou capinando prá manter sempre utilizável...essas trilhas davam num campinho de futebol e descendo ainda mais terminavam no lago....Este lago estava vazio . Uma chuva estourou a barragem. Os padres no entanto decidiram restaurar a barragem e, meses depois as águas voltaram a encher o bendito lago.
Após o almoço, tínhamos sempre uma hora de descanso e as 13,15 hs o sino era badalado chamando-nos para a aula de religião. Aproveitávamos esse horário para passear pelas trilhas e consequentemente acabávamos todos beirando o lago e foi num desses passeios que percebemos um pequeno barco de madeira boiando próximo a margem. Digo pequeno, mas era minúsculo, cabendo nele apenas uma pessoa...estava ali paradinho balançando e tentador. Todos nos aproximamos e percebemos que havia água dentro, devia estar furado com certeza e após algumas averiguações confirmamos o fato. Era porém um buraquinho tão pequeno que ao ser esvaziado demoraria a encher novamente..." Quem tem a coragem de atravessar o lago remando com as mãos nesse barquinho? " - alguém lançou o desafio. Alguns se apresentaram de imediato e coube a mim ser o primeiro de todos. Esvaziamos o barco e entrei ficando de joelhos dentro dele para poder remar com as mãos e iniciar a travessia. Empurraram-no e iniciei a pequena aventura sob os alardes de " vai Neri, você consegue! "....Sabia que se naufragasse eu poderia me safar facilmente pois sempre fui um exímio nadador...assim o barquinho impulsionado pelas remadas das mãos foi se afastando da margem em direção ao centro do lago.
Esquecemos no entanto que, agora havia um peso dentro dele que apressava mais a entrada das águas pelo buraquinho e assim antes que chegasse ao centro do lago o barquinho já estava encharcado molhando minhas calças, sapatos enfim..voltar ou continuar? Continuei e aos poucos fomos sendo engolidos pelas águas...tive que terminar a travessia a nado...os amigos aproveitando a situação também pularam na água...mas eu estava de roupa e encharcado e o sino tocou lá no seminário chamando-nos prá aula de religião...e foi aí que caiu a ficha " e agora? Chegar ensopado? " " O que dizer pro padre? "....Os rapazes que não haviam entrado no lago foram subindo as trilhas na frente e nós os encharcados logo atrás...mas quando nos aproximamos do campo de futebol que havia abaixo do seminário percebemos que havia um padre na sacada do primeiro andar a nos observar de longe...nada menos do que o Padre Libardi...Os da frente apressaram os passos e nós continuamos com mais lerdeza sem olhar pro alto mas o Padre foi logo perguntando: " Voce esteve nadando no lago, Neri ?". Eu, com a maior a cara de pau e molhado até os ossos respondi que " não padre, eu não estive não!"
O Padre Libardi era um padre muito coerente, prá ele não havia meio termo, era sim sim ou não não. Não gostava de mentiras e sabia ser exigente quando era preciso ser exigente e essa postura assustava alguns...envolvia de corpo e alma nas brincadeiras entre os alunos, quantas vezes nos reunimos no gramado do jardim e tentamos em cinco ou seis derrubá-lo ao chão...era forte e ágil e quando caía todos faziam festas pela façanha de ter derrubado o ' Libardão ".
Na hora da oração da noite ele conduzia nosso exame de consciência sobre os ocorridos durante o dia ...e ajoelhado diante do Santíssimo findávamos a oração cada um refazendo ali seus compromissos de melhorar no outro dia...Nessa noite o Padre, antes de terminar disse: " Quero falar com todos aqueles que hoje após o almoço foram nadar no lago. Eu os espero em meu quarto!". Todos sentiram um frio na barriga e os olhares se cruzaram acusadores e cúmplices. Eles não foram interrogados pelo padre e não mentiram mas eu fui questionado e havia mentido descaradamente .
Melhor dizer a verdade sobre a mentira do que mentir sobre a verdade...serão alguns minutos de sermão mas esses minutos passam...melhor passar isso agora do que continuar amanhã sem ter coragem de olhar nos olhos do padre...Ao chegar no corredor já havia uma pequena fila aguardando para serem todos atendidos...fiquei por último...cada um que entrava saía de cabeça baixa...a barriga doía, as pernas estavam meio bambas até que chegou minha vez...enfiei a cabeça no vão da porta: " Boa noite padre!". O Padre Libardi ao me ver ali, abriu os braços e me chamou: " Oh filho, entre, o que aconteceu? " e me apertou contra o peito num abraço bem aconchegante e inesquecível. " Voces poderiam ter morrido no lago, imagina nadar após a refeição! " ...Eu não sou bravo não meu filho, só quero o bem de todos vocês, não precisa ter medo de mim. A gente não se diverte juntos de vez em quando? Não faz mais isso não, é perigoso!" Promete? "
Aliviado e feliz prometi não mais mentir e fui dormir em paz. Estava gravado em meu coração o poder do perdão.
O tempo passou. Saí do seminário e estava morando no bairro São Vicente...Estava com alma toda revestida de conceitos morais adquiridos no tempo de seminário...certo é certo, errado é errado...Participava da juventude paroquial e esbanjava cultura sobre amor , sobre justiça e fraternidade...despejava ali tudo que adquiri em tempo de seminário...era mestre em dar palestras que atraiam os jovens...e por aí vamos até que: bem, não havia ônibus em nosso bairro. Para frequentar a juventude paroquial nós caminhávamos cinco quilômetros e subíamos no ônibus que até hoje faz o roteiro Franco da Rocha - Mairiporã.
Certo dia, eu regressava do curso de desenho que frequentava no centro da capital...pegava o trem até Franco da Rocha e esse ônibus linha de Mairiporã...Desci no ponto da Vila Machado. Ao descer percebi que meu avô Antonio Pereira da Silva também havia descido do ônibus vindo de Mairiporã.
- Bença, vô !
- Deus te abençoe Neri, vamos andar?
Ao iniciar a subida do morro na Vila Machado ouvimos um resmungo vindo de dentro de uma enorme valeta que a chuva sempre causava naquele local. Chegamos perto e vimos um senhor machucado que ali se acidentara com sua bicicleta. Estava embriagado. Nós o reconhecemos e nos propusemos ajudá-lo. Força daqui, ajuda dali, uns curiosos nos ajudaram a retirar a bicicleta. Meu avô apenas me disse: "Leva a bicicleta que eu me encarrego de sustenta-lo até São Vicente." Peguei a bicicleta e ali iniciamos a caminhada de cinco quilômetros...eu empurrando a bicicleta e atento aos dois que se agarravam caminhando lentamente...meu avô se envergava sob o peso da pessoa que estava totalmente bêbada...tive pena de meu avô e vendo a cena comecei a criticar e maldizer o bêbado : " Que papel feio! Como pode um homem adulto se encharcar de cachaça? , chegando em casa você verá o que o espera! No mínimo vai levar uma surra! Cria vergonha na cara! Isso não se faz, seu desavergonhado ! Sua mulher irá recebê-lo com o cabo de vassoura e eu vou ajudar a lhe dar uma sova! Onde já se viu uma coisa dessa?" . Meu avô não dizia nada e continuava caminhando amparando o pobre coitado. Parávamos de vez em quando para descansar...Respirávamos e continuávamos lentamente e fatigados. Dentro de mim eu ia imaginando a cena de espancamento que brevemente ocorreria ao chegarmos a sua residência e no fundo torcia para isso pois, aquele sujeito era no mínimo um irresponsável alcoolatra que estava fazendo meu avô já velhinho sofrer com ele nas costas...O bêbado se arrastava e meu avô dizia:" Um pouquinho mais , coragem, já estamos chegando, olha, só mais um morro e já estamos em casa , força!." E assim fomos atravessando os cinco quilômetros de estrada de terra.
Finalmente nos aproximamos da última curva...dali sua mulher o veria e viria recebe-lo com as pancadas que eu tanto vinha mentalmente desejando pra ele...mas enfim, ao dobrarmos a curva e adentrarmos no terreiro meu avô gritou e a mulher nos percebeu....ela veio correndo abandonando as roupas no tanque e enxugando as mãos no vestido e de braços abertos e angustiada foi dizendo:
- "Meu amor, o que aconteceu com você? Bebeu outra vez? " - dizendo isso ajudou meu avô a terminar o trajeto...abraçou seu marido, beijou-o, chorou e o conduziu prá dentro com muito cuidado... meu avô explicou onde nós o achamos e as circunstãncias...Ele me olhou e veio buscar a bicicleta me agradecendo por ajudá-lo. Não me disse mais nada. Eu não sabia onde enfiar minha cara. Sentí-me ali o pior dos homens...estava aprendendo o que significava " amar de verdade" , a amar incondicionalmente...abaixei a cabeça e fui prá casa de meus pais.
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